Avanço de hidrelétricas fragmenta rios e ameaça equilíbrio ambiental em MT

Boletim aponta que bacia do Juruena concentra 185 projetos e alerta para licenças concedidas em tempo recorde, afetando territórios indígenas e ecossistemas.

O avanço acelerado de pequenas e médias usinas hidrelétricas na bacia do rio Juruena, em Mato Grosso, está fragmentando rios e ampliando riscos ambientais e sociais na região. É o que mostra o novo Boletim de Pressões e Ameaças às Terras Indígenas na Bacia do Rio Juruena, divulgado neste mês pela Operação Amazônia Nativa (Opan). O levantamento identificou 185 empreendimentos hidrelétricos em diferentes fases de implantação, 88 Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs), 72 Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e 25 Usinas Hidrelétricas (UHEs).

O número de CGHs mais que dobrou entre 2019 e 2025, impulsionado por normas que flexibilizaram o licenciamento e simplificaram as etapas de autorização. Segundo o boletim, 66% dos projetos estão em fase de planejamento, o que indica tendência de expansão nos próximos anos, inclusive em áreas próximas a terras indígenas.

A expansão é atribuída à Resolução Normativa nº 875 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), de 2020, que isentou as CGHs de etapas técnicas obrigatórias, como o Estudo de Inventário Hidrelétrico e a Declaração de Disponibilidade Hídrica. Com isso, as usinas de até 5 megawatts passaram a depender apenas do licenciamento ambiental da Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema).

“O relatório mostra a celeridade preocupante no licenciamento de CGHs. Por exemplo, as CGHs Janeque e Santa Cândida, na sub-bacia do Papagaio e localizadas no rio Buriti, próximas a Terras Indígenas, obtiveram as Licenças Prévia (LP) e de Instalação (LI) em intervalos extremamente curtos”, ressaltou o indigenista e geógrafo Cristian Felipe Rodrigues Pereira. O documento aponta casos em que foram necessários apenas 21 dias para que a LP fosse concedida. 

Em resposta à Rede Sucuri, a Sema afirmou que “segue os prazos e ritos legais previstos nas normas estaduais e federais de licenciamento ambiental” e que busca dar “resposta mais célere aos pedidos, aprovando ou reprovando os projetos apresentados”. Segundo o órgão, o prazo médio de análise de licenciamento ambiental em agosto foi de 45 dias.

A secretaria também justificou o uso recorrente do Relatório Ambiental Simplificado (RAS), um estudo de menor complexidade exigido em parte desses casos, com base na legislação estadual e na Resolução Conama nº 279/2001. “A Sema avalia caso a caso, observando critérios técnicos e de sensibilidade ambiental”, informou.

Consulta indígena em xeque

A rapidez das análises levanta dúvidas sobre o cumprimento do direito à consulta prévia, livre e informada das comunidades indígenas, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O boletim documenta casos em que as licenças foram concedidas mesmo com pendências nessa etapa, como as CGHs Guatá, Janeque e Santa Cândida.

Questionada sobre o tema, a Sema disse que, nos casos com interferência em terras indígenas ou empreendimentos localizados a menos de 10 km delas, notifica o empreendedor “para cumprimento da consulta nos moldes da OIT 169” e oficia a Funai, aguardando manifestação do órgão.

A Aneel, por sua vez, afirmou à redação que apenas aplica o que está previsto em lei, que isenta CGHs de até 5 MW de concessão ou autorização formal, e destacou que a avaliação de impactos cumulativos e socioambientais é de competência dos órgãos ambientais, e não da agência.

De acordo com o levantamento, a sub-bacia do rio Papagaio é a mais pressionada, com 42 empreendimentos em planejamento, seguida pelas sub-bacias do Arinos e do Juruena. No rio Sacre, afluente do Papagaio, há 11 projetos previstos, sendo oito PCHs, duas CGHs e uma UHE, em sequência ao longo do mesmo curso d’água.

Pequena central hidrelétrica (PCH) (Foto: Raylton Alves / Banco de Imagens ANA)

Essa “escada energética”, como definem os pesquisadores, ameaça a conectividade hídrica e os ciclos migratórios dos peixes, essenciais para a reprodução de espécies e para a subsistência de comunidades ribeirinhas e indígenas. “A fragmentação provocada por pequenas hidrelétricas na Amazônia tem causado impactos significativos sobre a biodiversidade aquática”, alerta o boletim.

Entre os povos mais afetados estão os Enawene Nawe, que vivem na região do alto Juruena. A falta de peixes, provocada pela proliferação de barragens, já comprometeu o ritual sagrado Yaõkwa, reconhecido pela Unesco como patrimônio cultural da humanidade. Como mostra reportagem do Le Monde Diplomatique, sem peixe suficiente, o povo tem recorrido à compra em tanques e represas para manter o ritual.

Indígenas Enawenê-nawê (Foto: Rita Salgado – Projeto Nuclam/UCB)

Estudos desatualizados

A Avaliação Ambiental Integrada (AAI) da bacia do Juruena, elaborada pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), continua sendo usada pela Sema como referência técnica, mas ainda não foi atualizada, apesar do aumento expressivo de projetos nos últimos anos.

Segundo a secretaria, há possibilidade de revisão do estudo “junto a instituições parceiras, conforme a evolução do cenário de empreendimentos e das diretrizes nacionais de planejamento energético”. O boletim, porém, defende urgência na atualização da AAI e no fortalecimento dos comitês de bacia hidrográfica, para evitar a sobreposição de empreendimentos e garantir uma gestão mais equilibrada dos recursos hídricos.

Entre 1985 e 2024, a superfície de água da bacia do Juruena diminuiu 10,3%, enquanto as áreas irrigadas cresceram 1.678%, segundo dados do MapBiomas citados no relatório. No mesmo período, 28% das áreas naturais foram suprimidas. “Essa combinação de hidrelétricas em cascata, aumento da irrigação e perda de vegetação compromete a resiliência hídrica da bacia”, alerta o documento.

 

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