
A comunicação livre e inovadora da produção de conhecimento é um necessário e urgente contraponto ao negacionismo e ao populismo autoritário de viés totalitário que se ocupam em reduzir, por exemplo, a questão da crise climática a uma discussão meramente ideológica. Sabemos que a questão ambiental é uma situação problemática complexa e que não pode ser dominada pelos argumentos rasos dos que se ocupam de negar a ciência. Tão urgente quanto tratar da crise climática é, a partir da comunicação, saber como compartilhar mais e melhor com a sociedade o conhecimento produzido pelas pesquisas científicas.
Como comunicar ciência? Esta pergunta nos orienta aqui a tratar de uma forma de escritura de ciência que alarga a cultura acadêmica e, em desdobramento, oferece a potência de uma comunicação para o que chamamos de “públicos alargados”. Ou seja, uma comunicação acadêmica entre os pares de uma comunidade científica que vá para além deste diálogo entre pesquisadores. A democratização do conhecimento é devolver o conhecimento que nasce da sociedade de volta à sociedade.
A experiência estética da escritura em imagens e sons é aplicada ao que desenvolvemos em termos teóricos e práticos desde 2005: o ensaio audiovisual científico, que está inserido no campo da comunicação multimodal. E o que é afinal Comunicação Multimodal? A multimodalidade é um termo para abranger diferentes experiências em pesquisas, práticas e disciplinas. A inspiração conceitual não se concentra explicitamente na comunicação acadêmica, mas nela situa o entrelaçamento entre a Arte e a Ciência.
A multimodalidade na Comunicação é o estudo e a prática de modos inovadores e afetivos de produção de conhecimento, por exemplo, a partir de imagens e sons, que vão além da primazia das palavras como único veículo legítimo. Estas modalidades se aplicam para as atividades de pesquisa acadêmica que incluem a escritura dos achados da ciência comunicada entre os pares, ou seja, referenciada.
A pesquisa baseada em arte (ABR) é um método de pesquisa qualitativa que usa processos artísticos para entender a experiência humana. Pode ser usada em muitas disciplinas e em todas as fases da pesquisa. A ABR usa processos artísticos para entender e articular a subjetividade da experiência humana. Pode ser usada para descrever, explorar ou descobrir; abordar interações complexas e sutis; fornecer uma imagem dessas interações de maneira que as tornem perceptíveis e integrar princípios éticos de pesquisa orientados para a ação. Dois dos maiores especialistas em estudos de pesquisa multimodal baseada em arte são a professora e pesquisadora Patrícia Leavy e o professor e pesquisador Nico Carpentier.
A comunicação multimodal que eu e meu parceiro, o professor doutor Benedito Diélcio Moreira, também da UFMT, desenvolvemos em nossos trabalhos tem algumas instâncias conceituais e prática definidas: a) o estudo da produção de conhecimento a partir de imagens e sons; b) a apreensão e reflexão sobre as diferentes (multi)modalidades na junção/disjunção das formas e conteúdos da comunicação, e c) a autossuficiência da imagem/som para a criação de uma nova escritura acadêmica, somando-se às tradicionais formas de comunicação entre pesquisadores, como por exemplo o artigo e capítulo de livro.
Epistemologicamente, o ensaio audiovisual científico é a construção de uma escritura audiovisual que nasce do entrelaçamento da arte e da ciência. Buscamos desenvolver uma linguagem que acolha os conteúdos da ciência a partir das formas da comunicação visual, sonora e artística. O caráter pleno da das imagens transformadas em símbolos de significados operativos, autoriza a remissão da ideia posta em forma a um conteúdo sensível ou experimentado. A ideia de alguma coisa, a partir da visada filosófica delavolpiana. Dado que a forma está no princípio da expressão, que as formas são o intermediário que particulariza esta expressão e que o conteúdo é sua referência, há uma funcionalidade recíproca da forma e conteúdo, no final das contas unificado.
Metodologicamente, trabalhamos com os princípios fílmicos de como mostrar e como contar no processo de montagem. O valor do conhecimento não é intrínseco a só uma imagem, como tão pouco a imaginação consiste na involução passiva em uma só imagem. Trata-se ao contrário, de por o múltiplo em movimento, de não isolar nada, de fazer os hiatos, as analogias, as indeterminações e as determinações na obra. Com Georges Didi-Huberman (Imagenes pese a todo. Paidós/Espanha, 2004), “o pensamento é montagem”. Conhecer por imagens, portanto, aponta para a dialética entre meios expressivos (formas técnicas, materialidade dos signos, estruturas) e significados a fixar e transmitir (pensamentos, ideias, concepções de mundos, tendências ideológicas).
O ensaio audiovisual é uma fusão de verbal, imagem e som, e não uma simples justaposição de camadas semânticas. Esta fusão estabelece a forma de escrita que mistura, no ensaio, vários modos e figuras, que, muitas vezes, escapam à categorização do gênero. O ensaio talvez seja melhor pensado como um modo de comunicação. A abertura para outros públicos não acadêmicos é dada pela possibilidade de acesso a plataformas de vídeo no mundo digital e pela leitura mais usual de imagens do que a leitura de artigos verbais. Certamente, consideramos o acesso, a expansão e a possível compreensão de outros públicos como uma consequência positiva do processo de democratização do conhecimento e do pensamento reflexivo.
A partir destas formulações da filosofia, arte, ciência, comunicação, cinema e audiovisual, apresentamos nossas bases e nossos propósitos do ensaio audiovisual científico:
– Não é uma escritura sobre ciência. É uma escritura DE ciência, como um artigo verbal ou um capítulo de livro;
– É uma comunicação para os pares, apresentando achados de uma pesquisa e/ou uma reflexão acadêmica, conceitual e prática, sobre um saber;
– É uma escritura, portanto, referenciada pela respectiva comunidade científica, para ser divulgada em publicações digitais de universidades e grupos de pesquisa;
– É uma comunicação que pode ser aplicada para todos os campos científicos, e não só para as ciências humanas e sociais, ou especificamente sobre o Cinema;
– É uma proposta de democratização de conhecimento. Públicos não acadêmicos têm mais facilidade em compreender um texto audiovisual do que um paper;
– É um espaço de experimentação e trabalho para profissionais e estudantes de comunicação, cinema e audiovisual e artes, inclusive em diálogo com profissionais e estudantes de qualquer campo acadêmico e científico.
A Rede Sucuri trabalha com temáticas que oferecem uma rica oportunidade de produção multimodal de conhecimento. Diz o editorial: “os seus esforços estão concentrados nos biomas Amazônia, Pantanal e Cerrado, especialmente no território mato-grossense, onde a rede está baseada”. Meio ambiente, ciência, bioeconomia e turismo fazem emergir imagens e sons que podem ser criativamente incorporados como informação, como construção de conhecimento nas reportagens e nas pesquisas das áreas. Imagens e sons podem ir além de uma condição acessória ou mera ilustração. Este é um desafio posto para pesquisadores e jornalistas da Rede: comunicar, também, por imagens e sons, uma inovação, além da tradicional escritura textual.
Ao fim e ao cabo, deixo aqui algumas sugestões de leitura de artigos e capítulos de livro para quem estiver interessado em conhecer mais a experiência estética do ensaio audiovisual científico. E, claro, algumas sugestões de ensaios audiovisuais realizados sobre diferentes temáticas, a maioria apresentada em congressos da IAMCR – International Association for Media and Communication Research: o debate da crise climática na eleição de prefeito de Cuiabá em 2024; as cenas da extrema direita no 8 de janeiro de 2023; o assassinato da vereadora pelo Rio de Janeiro e ativista política Marielle Franco em 2018 e um estudo exploratório sobre as formas de apreensão da comunicação multimodal por diferentes pesquisadores.
Para ler:
La autosuficiencia de la escritura audiovisual científica
https://revistaeic.eu/index.php/raeic/article/view/268/675
Roteiro do ensaio audiovisual científico: mundo rural e o cultivo do agropolítico no Brasil – a semente de Mato Grosso
https://seloppgcomufmg.com.br/colecoes/celebridades-no-seculo-xxi-vol-2/
Video-ensayos: pensar académicamente en imágenes y en relación con “el otro”
https://drive.google.com/file/d/1oF1ypv8g_L3CXLZVctMv1P9-4HKOBeR7/view
El surgimiento de lo “nuevo”: metodología para la adaptación del artículo científico en versión audiovisual
https://dialnet.unirioja.es/servlet/libro?codigo=877206
Para assistir:
Cenas da extrema direita no Brasil
Novas formas de comunicar ciência: a experiência do ensaio audiovisual científico
Multimodal Communication, Art, and knowledge production: an exploratory study of the relationshipe between forms and content
https://drive.google.com/file/d/13gfrg47iqCYSA9utpK7OTEoCIKE5fXIj/view?usp=sharing
Scenes of the election in Cuiabá: far right despises political debate on environmental destruction
https://drive.google.com/file/d/1P70oNbZpo9oceQHCbgoMrya7i4KyJWZ2/view?usp=sharing
Quem faz viver Marielle?
https://drive.google.com/file/d/1s_-b7Xeej5vDHE1OYCy-bx5oPkslfnAi/view?usp=sharing
Vida longa à Rede Sucuri!
Pedro Pinto de Oliveira
Jornalista do PNB Online e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-doutor em Comunicação e Artes pela Universidade da Beira Interior (UBI), Portugal, e pós-doutor em Comunicação e Política pelo Instituto Politécnico de Coimbra, Portugal. É coordenador do Grupo de Pesquisa Multimundos/UFMT e vice-coordenador do Grupo de Trabalho de Pesquisa em Comunicação Multimodal da IAMCR – International Association for Media and Communication Research. É membro do Grupo de Trabalho de Teorias e Métodos de Pesquisa em Comunicação da Associação Espanhola de Pesquisa em Comunicação (AE-IC). Suas áreas de interesse incluem Comunicação e Política; Acontecimento e Figuras Públicas e Ensaios Científicos Audiovisuais.

